Noel Rosa deixou o Curso de Medicina pelo Samba. E gostava tanto desse ritmo que, das suas 160 composições, somente seis não foram sambas. Isto é a novidade que levo hoje, para meus leitores, aqueles que me induzem e estimulam a escrever sobre os ídolos da MPB. Noel merece ser novamente lembrado porque, maio, é o mês em que morreu. Aqui, ele conta do próprio punho, fases da sua vida profissional, que constam em poucas relíquias literárias, às quais poucos tiveram acesso. Vamos ver agora o que fala de si este grande ícone dos cantores-compositores brasileiros.
“Um belo dia, eu recebo convite para uma excursão ao sul do Brasil. Deveria ir com Francisco Alves, Mário Reis, Nonô e Peri Cunha. Aceitei. Lá fomos nós, cantando, semeando melodias, e sempre aclamados. Um ano antes estive em excursão nas cidades de Vitória (ES) e Santos (SP). A boa estrela da sorte acompanhava os meus passos. Assim é que, em todas as regiões percorridas, agradei sempre.
Depois de “Festa no céu” e “Minha Viola”, iniciei uma fase de intensa atividade musical. Atividade, por assim dizer, ininterrupta. Era preciso desenvolver um trabalho que correspondesse à minha ânsia criadora. Mas o gênero para que me sentia inclinado era o samba e exprimindo-me através do samba. Basta dizer que, em 160 produções, só realizei três foxes, três canções e três emboladas. Tudo o mais é samba.
Mas o meu maior e definitivo sucesso foi obtido com “Com que roupa?”, samba que impressionou bastante, como se verifica pela sua difusão, a sensibilidade do povo. “Com que roupa?” tem uma história interessante que vale a pena contar aqui, a título de curiosidade. Foi um caso que se passou comigo mesmo. Com Sangue de boêmio, eu passei a chegar em casa, em determinada época, a altas horas da noite. Vinha de festas, ou de serenatas, ou simples conversas. Mas o fato é que essa vida, passada toda em claro, devia prejudicar a minha saúde. Foi o que aconteceu.
Comecei a emagrecer. A emagrecer assustadoramente. Adquiri umas olheiras dramáticas. “Que é isso, Noel, paixão incubada?”, perguntavam-me. Eu sorria. Mas quem mais se assustava era mamãe. Pressentiu, antes que ninguém, o meu estado. E dia-a-dia, renovava as suas advertências, os seus apelos, para que não me demorasse na rua tanto tempo, para que dormisse mais, que eu acabava doente. Eu prometia que sim. Mas a minha vontade era nula. E chegava, fatalmente, às mesmas horas com as mesmas olheiras e aquele emagrecimento progressivo, que estava alarmando todo mundo.
A MÃE ESCONDEU SUAS ROUPAS PARA NOEL NÃO SAIR DE CASA
Desesperada de conseguir a minha obediência pelos recursos da persuasão, minha mãe lembrou-se de um antigo recurso, mas cujo efeito é sempre eficaz. Assim é que escondeu todas as minhas roupas. Sem exceção. Fiquei desesperado. O pior é que, na véspera, mandara que alguns amigos me viessem buscar para irmos a uma festa. Os amigos não faltaram. A noite, batiam lá em casa: “Como é, Noel, vamos para o baile?”. E eu, dentro do quarto: “Mas com que roupa?”. Mal eu tinha acabado de soltar a frase, quando me ocorreu a inspiração de fazer um samba com esse tema. Daí o estribilho:
Com que roupa, eu
Ao samba que você me convidou?
Foi um barulho. Todo mundo cantou. É assim que eu faço as minhas coisas. Com situações, episódios, emoções, aspectos colhidos na vida real. Houve uma fase na minha vida em que vi abrirem-se os meus olhos, uma interrogação desconcertante. O samba bastaria para encher minha vida? Ou era preciso seguir uma carreira austera, fazendo melodias só nas horas vagas, como um simples e inconsequente recreio? Eu me havia bacharelado pelo Mosteiro São Bento. Sabia alguma coisa. Entrei para a faculdade de medicina, no firme propósito de ser médico.
Mas não tardou que me convencesse de que a medicina era uma carreira absorvente. Estudos incessantes, profundos, que não poderiam ser jamais abandonados, que exigiam todas as atenções. Eu devia continuar com o samba, deixando a medicina? Ou devia renunciar ao samba? Era uma alternativa dramática. Outra questão se apresentou aos meus olhos: qual era o destino mais coerente com a minha natureza, com as minhas aptidões natas? O criador de ritmos ou o médico? Colocado na contingência de optar, uma vez que as duas atividades não podiam ser conciliadas, escolhi o samba.
O disco com que roupa? Vendeu 15 mil exemplares, o que é uma tiragem bem considerável e raras vezes atingida. Do outro lado do mesmo disco, o público encontrou outra produção minha: “Malandro medroso”. Tive, ainda, algumas melodias que se fundiram bastante, tais como “Mulata fuzarqueira”, “Cordiais saudações”, “Quem da mais?”, “Para esquecer”, “Três apitos”, “Até amanhã”, “Você, por exemplo”, “Dona Aracy”, “Dona Emília”. De parceria, reuni as seguintes composições: “Gosto mas não é muito”, com Francisco Alves e Ismael Silva; “Não faz amor”, com Agenor de Oliveira; “Vai haver barulho no chatô”, com Valfrido Silva; “Para me livrar do mal”, com Ismael Silva; “Fui louco”, com Bide; “Triste cuíca”, com Hervé Cordovil.
É o samba “Pela décima vez”, que compus este ano. É a melodia que fala mais à minha alma, que me sugestiona mais poderosamente a imaginação, que acorda em mim o desejo do sonho. Fiz “Pela décima vez” com verdadeiro carinho artístico, procurando fixar, malgrado a aparente leveza do tema, um verdadeiro drama coração. Para francamente, sou do samba rasgado. Porque é o destino que perfuma os meus instantes de poesia, que constitui uma verdadeira fonte de beleza.
É Hélio Rosa. A sua vocação não mais admite dúvidas. Especializou-se em violão. Faz verdadeiros prodígios com os dedos e conhece os efeitos mais sutis do instrumento. Quem o ouça terá de experimentar uma sensação de legítimo encantamento. Porque sabe arrancar do violão os efeitos mais belos, as nuances mais ligeiras, as gradações mais perfeitas. Pretendo lançá-lo ainda este ano. 

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