O MUNDO NÃO SE ACABOU, FALOU JOSÉ DE ASSIS VALENTE. ARTIGO Dom Cardoso

O MUNDO NÃO SE ACABOU, FALOU JOSÉ DE ASSIS VALENTE. ARTIGO  Dom Cardoso

    Nesta hora em que todos estão preocupados com a pandemia do novo corona vírus, é bom lembrar que, na Música popular Brasileira, já houve cantores e compositores da terrinha – a exemplo dos quatro baianos José de Assis Valente, Dorival Caimy, Josué de Barros e Raul Seixas -, que souberam dirigir  mensagens musicais e de composição para erguer o moral do público de meio mundo, na efervescência das Primeira e Segunda Grande Guerra, no surgimento da gripe espanhola e no auge da ditadura militar. 

  Os dois conflitos mataram mais de 50 milhões de pessoas e igual número de vidas ceifou a famosa gripe, sendo cerca de 20 mil só no Rio de Janeiro. A Ditadura Militar, todos sabem como agiu. Porém, as músicas desses cavaleiros inimigos da fatalidade, tocaram fundo no instinto de conservação de cada um e fê-los reagir aos flagelos, sem desobediência às normas técnicas, médicas e científicas, que ensinavam o povo a evitar mortes e mutilações. Então, vamos em frente, desânimo zero e continuemos com a vida.

     Na sua música O Dia Que a Terra Parou, Raul Gil foi até satírico – e por que não dizer profético? – ao aconselhar o povaréu a não sair às ruas e a ficar em casa, dando exemplos de que não deveria se expor, porque não haveria lucro para ninguém. Os exemplos eram simples: “a polícia não ia encontrar o ladrão na rua, que, por sua vez, não encontraria a quem roubar. Viram? Morreu entregue às drogas, mas nunca se intimidou com a morte que provém das aparentes situações de caos.

   Dorival Caymmi, numa época – a década de 1940 – em que pescadores morriam em acidentes de navegação na Bahia, compôs Como é Doce Morrer no Mar e obteve um sucesso invejável Já Josué de Barros, gravou, em 1932, “O Preço da Liberdade”, uma composição que criticava a discriminação da sociedade da época, que ainda demonstrava sentimentos escravagistas, mesmo que a abolição, imposta via Lei Áurea, tivesse ocorrido 44 anos antes.

     Muitos sofreram e não esmoreceram. Esses que acabei de falar passaram por períodos de guerra, desengano profissional, gripes exterminadoras e outros flagelos. E agüentaram de pé as pancadas na cabeça, até que a luz, de alguma forma, surgiu na vida deles, não importando o tipo de comportamento que individualmente levaram, optando por diversas extravagâncias. De qualquer forma foram vencedores e incentivadores dos que pensavam em nunca chegar lá.

    Agora, vamos à incrível vida de José de Assis Valente. Apesar de constar entre os maiores compositores do Brasil, teve uma vida traumática. Mas não deixava transparecer isto profissionalmente e, como bom protético, exibia aquele largo sorriso de dentes fortes e brancos. Teve uma infância ruim – foi roubado dos pais, numa feira de Salvador -, sendo criado por estranhos, que só queriam explorar sua mão de obra juvenil.

    Foi entregador de costuras, atendente de balcão e vendedor de jornais. Ria e incentivava os outros, mas vivia amargurado com a sua bissexualidade, nunca revelada a ninguém. Nem mesmo à mulher com quem casou, Naidili Silva, que lhe deu uma filha. Visava atingir a felicidade e aconselhava bem a quem lhe revelava tendências fatalistas.

   O Dicionário Cravo Albin registra que Assis trabalhava até a exaustão. Aos sábados,  fazia feira com sua patroa. Vagou com um circo pelo interior, no qual, entre outras coisas, cantava: “Vejam só Vejam só A roupa que há cem anos, já usava minha avó Veio a vez veio a vez De cada roupa dessas se fazer duas e três”. Em Salvador, trabalhou como farmacêutico, fez cursos de desenho no Liceu de Artes e Ofícios e profissionalizou-se como especialista em prótese dentária. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, em 1927 e empregou-se como protético.
  Em 1930, começou a compor sambas. A 13 de maio de 1941, no apogeu da carreira, o Rio de Janeiro surpreendeu-se com a notícia de que ele se jogara do Corcovado          (710m de altura). Milagrosamente ficou preso a um galho de árvore, sendo resgatado pelo Corpo de Bombeiros. Salvo, moralmente prosseguiu em decadência. Seu nome foi, aos poucos, esquecido.

   Paralelamente, a alegria d’alma de Valente era lembrada nas músicas de sua autoria que Carmem Miranda cantava. O jeito feminino e insinuante com que Carmem Miranda interpretava O Mundo Não se Acabou, casava bem com a letra do protético-compositor que, através dela esteve na crista do sucesso. Quando a cantora negou-se a gravar Brasil Pandeiro, Valente entregou-se à má sorte e passou a consumir cocaína.

   A 10 de março de 1958, desesperado com sua situação financeira, resolveu suicidar-se. Deixou a casa em que morava, seguiu para o seu consultório na Cinelândia, onde permaneceu até cerca das l3h30. Às 15 h foi à Sbacem, uma arrecadadora de direitos autorais, para se informar de seus rendimentos. Estava tão nervoso que o tesoureiro da Sbacem, Joubert de Carvalho (o compositor de Maringá), deu-lhe um sedativo. 

    Ás 16h30 telefonou para seu laboratório dando instruções aos empregados do que deveria ser feito após sua morte. Às 17h30 telefonou para seu editor, Vicente Vitale, e para o embaixador Pascoal Carlos Magno comunicando-lhes que iria se matar. Vitale ainda tentou ligar para a Polícia: era tarde. Exatamente às 17h55, oito dias antes de seu 47º aniversário, tomou formicida com guaraná, perto de um parque infantil.

             O MUNDO NÃO SE ACABOU

    “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar /Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar /E até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada/Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada/Acreditei nessa conversa mole/Pensei que o mundo ia se acabar/E fui tratando de me despedir/E sem demora fui tratando de aproveitar/Beijei na boca de quem não devia/ Peguei na mão de quem não conhecia/Dancei um samba em traje de maiô/E o tal do mundo não se acabou”.

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